quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

NÁUFRAGOS

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Analistas políticos, filósofos e estudiosos em geral vêem utilizando uma série de expressões para caracterizar os tempos atuais, de forma mais específica as últimas décadas do século XX e o início do século XXI. Segundo tais avaliações, estaríamos diante de uma “transição paradigmática” ou “mudança epocal” (Boaventura Santos), do fim dos “metarrelatos”, que caracteriza a “passagem da sociedade moderna para a sociedade pós-moderna” (Jean-François Lyotard e David Harvey; ou então diante da “modernidade tardia”, com suas conseqüências múltiplas e contraditórias (Anthony Giddens), da “era da informática”, que marca a “sociedade em rede”, o  “fim de milênio” e o “poder da identidade” (Manuel Castells).
Para outros, está em jogo uma reinterpretação dos valores e princípios fundamentais do próprio edifício da humanidade. Daí o acento sobre a “crítica da modernidade” (Alain Touraine) e a preocupação com “a identidade cultural na pós-modernidade” (Stuart Hall), como também o denúncia de algumas implicações morais dessa transição, tais como “o império do efêmero” e “a era do vazio” (Gilles Lipovetsky).  O avanço da economia globalizada leva a repensar a relação entre o lugar e o cotidiano, de um lado, e, de outro, o estado de saúde do planeta Terra (Milton Santos). Mas leva ainda mais longe, trazendo desafios novos a novas situações históricas e estruturais: por exemplo, como redescobrir ou recriar “o princípio da humanidade”, fugindo da “tirania do prazer” (Jean-Claude Guillebaud).
Outros, ainda, seguem questionando os tentáculos cada vez mais sutis e invisíveis do “império” contemporâneo, que penetra em todas as áreas e dimensões da vida e da história, enquanto engendra uma reação nova por parte da “multidão”, entidida aqui como um novo protagonista dos tempos atuais (Antonio Negri e Michael Hardt). Império e multidão que não se confundem, pura e simplesmente, com a “era dos impérios”, onde estavam bem demarcadas as fronteiras entre os países centrais, com suas metrópoles e as colônias periféricas a serem exploradas, vivendo numa dependência crônica (Eric Hobsbawm). Entre uma visão e outra, não é difícil identificar rupturas e continuidades no processo complementar de devastação dos recursos naturais, de exploração da força de trabalho e de acúmulo do capital. Concentração  de riqueza, por um lado, e exclusão socioeconômica e política, por outro, constituíam e seguem constituindo as duas faces de uma mesma moeda.
A lista de autores poderia ser prolongada. Acumula-se hoje uma safra recorde de teses, de análises e de pesquisas de campo. Nunca essa vegetação intelectual se revelou tão exuberante e diversificada em seus galhos e folhas, em suas flores e frutos. O que, de resto, é de fácil compreensão: na medida em que as grandes explicações se atrofiam e proliferam os “estudos de caso”, pontuais e sem maiores pretensões exaustivas, também se perdem as grandes referências que iluminavam o “século das luzes”. Não temos mais o fôlego macro-histórico de um Hegel ou Marx, mas pequenos respiros que procuram entender o que se passa ao redor, com algumas intuições do “local para o local”, expressão que se tornou emblemática. Dificilmente alguém se aventuraria, hoje, a uma análise exaustiva e abrangente. Prevalece o estudo sobre áreas especializadas. Também nas ciências sociais e humanas, em especial na história, o clínico geral deu lugar ao médico especialista.
Um olhar geral a essa, digamos, “transição paradigmática” nos conduzia à constatação parafraseada de Simone de Beauvoir: as estrelas se apagaram no céu, os marcos desapareceram da estrada e o chão sumir debaixo de nossos pés. Em nível histórico, as interpretações substituíram os conceitos, as verdades ou certezas deram lugar às dúvidas, as interrogações se levantam por todos os lados, o relativismo se impõe. Numa palavra, as novas perguntas se tornaram maiores que nossa capacidade de responder. Isso caracteriza um tempo de crise, cujos sintomas mais visíveis, individuais ou coletivos, são o medo, a angústia, a inquietude, a insegurança, a instabilidade chegando até ao esgarçamento do tecido social. Segundo algumas análises, as transformações “rápidas e profundas” (Gaudium et Spes) ou a “sede de inovações e a agitação febril” (Rerum Novarum) que se instalou nos países do ocidente a partir da Revolução Industrial, trazem consigo um progressivo rompimento do “contrato social”. A ponto de se falar no “ocaso do ocidente” (Umberto Galimberti). Pessoas, grupos e instituições de repente se veem às voltas com a própria identidade.
Além dos sintomas já apontados a crise atual, prolongada e abrangente, se caracteriza por um novo “mal estar da civilização” (Freud). Talvez a melhor metáfora para semelhante sensação seja o conceito de “vertigem”. De acordo com o Dicionário Aurélio, trata-se de um “estado mórbido em que o indivíduo tem a impressão de que tudo gira em torno de si, ou que ele próprio está girando”. Sem referências seguras, cada um se torna um átomo cujas partículas (interesses, paixões, impulsos, desejos, temores) giram em torno de si mesmo. Daí novas expressões como “sociedade atomizada”, “sociedade líquida”, e assim por diante. Em meio às multidões urbanas, cada um se sente só, órfão e perdido. Multidão neste caso é sinônimo de solidão, uma espécie de deserto moderno ou pós-moderno.
Outra sensação que toma o corpo, a mente e a alma é a de náufragos. Novos sintomas se fazem sentir: a própria estridência das buscas desesperadas; os gritos de socorro, tanto mais eloqüentes quanto mais silenciosos e silenciados; a compulsão do consumo exacerbado, que vai acumulando lixo nas casas e gavetas; os opostos do cinismo e do fanatismo, convivendo lado a lado... Tudo isso mais parecem braçadas de náufragos no desespero de se afogarem. Os mares estão revoltos, bravios. As ondas ultrapassam qualquer possibilidade de defesa. O porto e o farol permanecem invisíveis, dada a violência da tempestade. Ventos furiosos varrem os escombros das verdades e estátuas, ambas demolidas pela tormenta.  Tais braçadas são mais evidentes quando mais forte a presunção de certezas simples e imediatas. Contra o simplismo ingênuo do julgamento “preto-no-branco” ou do moralismo dualista e superficial, instalou-se a complexidade. Novos contextos levantam novas questões. As respostas aprendidas não cabem nos questionamentos pós-modernos. Estes extrapolam as receitas éticas, morais e políticas de que dispúnhamos.
Resulta que a crise se apresenta, não raro, como um verdadeiro naufrágio. Além de perder o a direção do porto, o barco segue sem bússola, sem leme e sem rumo. No meio da travessia tormentosa, os passageiros se sentem à deriva. Náufragos que, em meio às águas turbulentas de uma travessia ameaçadora, apelam para qualquer tábua de salvação. Daí o ressurgimento dos desuses – no plural. Quando os pés não encontram o chão firme, as mãos se debatem furiosamente em busca de algo que as mantenha à superfície do oceano, e o espírito busca luzes no transcendente. Cabem aqui, como ponto final, as palavras de São Boaventura, no século XIII: “Enquanto estamos peregrinando longe do Senhor, a fé é o fundamento que sustenta, a lâmpada que orienta, a porta que introduz a todas as iluminações espirituais”.

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